Eram exatamente 21:00h, quando abriu a porta do apartamento que continha o número 3060 feito em prata, pregado um pouco acima dum olho-mágico ao centro da madeira, exatamente no meio de uma exagerada guirlanda de Natal. Ao fazer, o jovem humano notou uma estranha dormência na mão, tão forte que mal sentira o contato frio com a maçaneta. Samael não pôde avistar muito, uma vez dentro de casa. Tudo ali estava absolutamente escuro. Era estranho, pois, através de um SMS, o irmão mais novo o avisara que a luz havia voltado há pouco. Talvez a energia tivesse sido cortada outra vez. Sim. Deve ser… Pensou, pois era quase rotina na casa dos Santana, ao menor sinal de chuva.
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Cansado e molhado devido à garoa que caía lá fora, o adolescente de dezoito anos forçou a vista de repente e, com certo esforço, conseguiu discerni uma luz fraca e tremeluzente rasgando a escuridão, vinda do alto da escadaria de madeira fixa exatamente no meio da sala de estar do apartamento luxuoso. Aparentemente, tal fulgor provinha de alguma lanterna ou vela.
— Luc! — Chamou pelo irmão.
Ainda fitando a luz no topo das escadas, Samael começou a tatear a parede ao lado da porta, procurando pelo interruptor e, mais uma vez, sentiu a estranha dormência em suas mãos ao fazer, mas não a levou muito a sério. Assim que o tocou o botão fez-se o estalo esperado, mas as trevas persistiam. Não havia luz no apartamento dos Santana, mas sim em toda a vizinhança, como o próprio rapaz pôde confirmar ao olhar através da janela maior da sala de estar e perscrutar lá fora. Ele então certamente concluiu que talvez fosse a velha caixa de fusíveis do apartamento, que por alguma razão desconhecida costumava pifar ao menor sinal de chuva.
O garoto abriu a porta do apartamento somente para se certificar. E a dormência nas mãos, como se não sentisse o seu toque, persistia. Ele fitou o vago corredor donde veio, entretanto tudo estava iluminado como antes. Com certeza o fusível queimou outra vez. Samael então fechou a porta de cedro que rangeu suave.
— Luc?! Está acordado? — Chamou cismado…
Mas não obteve resposta.
Nesse momento, passou pela cabeça do humano que finalmente o irmão mais novo poderia ter saído sozinho. Talvez tivesse ido até a casa dum vizinho assim que a luz fora embora ou ao cinema ou quem sabe até mesmo àquela festa da qual foi convidado por colegas de classe.
Não, acho que não… E balançou a cabeça após o pensamento. Com certeza o seu irmão não havia deixado o apartamento. Não quando há apenas minutos antes Lucas tinha ligado dizendo que estava no quarto jogando o novo videogame e comendo pizza, pouco antes da luz ir embora pela primeira vez. Não em noites de sábado. Não em véspera de natal, e também não quando Samael sabia perfeitamente que a leve depressão, a qual o irmão caçula havia se entregado desde a morte de seus pais, não permitiria que o fizesse.
Cansado após um dia bem desgastante, Samael preferiu subir, ver o irmão e logo em seguida se deitar, ao invés de consertar o fusível. O garoto então encarou um relógio antigo fixo na parede e conferiu que já passavam das nove e treze da noite. Essa não era à hora a qual ele estava habituado a chegar à sua casa no sábado logo após o curso de desenho especial de natal. Acontece que o responsável humano havia se atrasado um pouco devido a um acidente com o pai de uma amiga tanto quanto outro imprevisto de trânsito ocorrido durante seu caminho de volta, que interditou por um tempo uma das avenidas principais da capital mineira.
Samael começou a subir as escadas, às escuras. De repente, ouviu o som duma porta se abrindo e de passos, vindos do andar de cima. Passos que pareciam correr ecoando através do lustroso piso de madeira do apartamento luxuoso, decorado especialmente para o natal como sua falecida mãe gostava de fazer.
— Luc? — Samael disse, mas o silêncio prevaleceu outra vez.
Os passos cessaram e então o garoto terminou de subir as escadas, apressado. Foi de imediato ao quarto do irmão, antes de tomar qualquer outro destino. Ao abrir a porta, a primeira coisa que reparou foi na janela totalmente aberta, deixando com que a água da chuva invadisse o recinto, encorajada por suaves lufadas de vento. Os chuviscos estavam molhando a televisão do irmão, que se encontrava sobre um rack abaixo. Samael logo correu e fechou a janela, mais uma vez notando a dormência que já começava a lhe irritar. Logo em seguida fitou a cama do irmão caçula.
Lucas dormia tranquilo, junto a uma caixa de pizza quase vazia. O controle do videogame estava sobre a cama, junto ao controle remoto da TV. Samael sorriu, quando percebeu que o pirralho havia jogado o novo jogo que comprara até não aguentar mais. Não havia conseguido o esperar chegar para poderem se divertir juntos e aguardarem pela manhã de Natal, como sempre faziam desde a perda dos pais.
O Santana mais velho sentou na beirada da cama, ao lado do irmão e, ao fazê-lo, percebeu que Lucas estremecera um pouco como se houvesse sentido o sopro do vento, mesmo com a janela do quarto naquele momento estando fechada. Samael então o perscrutou atento.
Os lisos cabelos castanho-claros e cumpridos de Lucas caiam-lhe um pouco sobre a face caucasiana e juvenil demais para um garoto de quatorze anos. O humano mais novo possuía traços finos e delicados que herdara da mãe. Ao contrário do irmão mais velho, detentor de cabelos ruivos intensos, quase avermelhados, que puxou do pai.
Ambos eram mais do que simples irmãos. Eram amigos. Melhores amigos. Sempre ajudando um ao outro, principalmente após a morte dos pais, devido a um inesperado acidente de trabalho, onde ele — um arqueólogo bem-sucedido, e ela — uma historiadora perita em Línguas Mortas — descobriram alguns hieróglifos numa gruta localizada na cidade de Sete Lagoas, para onde haveriam de se mudar se tudo houvesse dado certo, há dois anos…
Samael se aproximou e cobriu o irmão, uma vez que o edredom do mais jovem encontrava-se caído ao chão junto às latas de seu refrigerante de cola preferido. Ele também retirou a caixa de pizza da cama e, nesse exato instante, percebeu algo errado além de não ter sentido o seu tato em nada que tocara desde quando havia entrado no apartamento.
Mas… E aqueles passos? Pensou assustado.
Lucas estava ali dormindo e não podia ser o responsável pelos passos que ouvira durante a subida pela escada…
Então Samael percebeu.
Foi ao fitar o abajur sobre o criado mudo ao lado esquerdo da cama de Lucas. Um abajur comum como qualquer outro, mas que devido às atuais circunstâncias deveria estar apagado.
O jovem humano se aproximou da luminária para averiguar melhor. Samael não estava acreditando que tal abajur pudesse estar aceso, não quando o fusível havia se queimado deixando o apartamento 3060 totalmente sem luz. Curioso, o garoto se abaixou e seguiu o fio do abajur com o olhar apreensivo. Foi quando ele realmente se assustou. A lâmpada da luminária se mantinha acesa, mesmo sem energia elétrica…
E desligada da tomada!
— Mas o que está…
Porém, antes que pudesse completar a fala, a televisão ligou sozinha, fazendo com que o coração do adolescente acelerasse ainda mais. Suor frio. Um medo perturbador o tomou de surpresa como se alguma mão enorme houvesse envolvido o seu músculo vital, apertando-o. A tela da LCD, que a princípio exibia somente a característica luz azulada, se sintonizou e a imagem foi se formando aos poucos. A transmissão de um noticiário da TV local que fazia a cobertura de um acidente de trânsito a poucas quadras do prédio dos Santana começou. O pavor percorria as entranhas de Samael. Seus olhos não conseguiam desgrudar do cenário de uma Avenida atrás da repórter. Ele então reconheceu o local. Era aonde havia ocorrido o acidente que o impediu de chegar mais cedo em casa. O acidente que…
Como se tivessem retirado alguma coisa do ouvido dele que estivera o impedindo de escutar claramente, Samael passou a ouvir a voz da repórter que dava a notícia:
— E quase agora a pouco, um grave acidente deixou congestionada a Avenida Afonso Pena… — dizia a mulher. — Uma pessoa morreu e outras cinco ficaram feridas quando um carro capotou subitamente e rodou nove vezes na pista. A vítima fatal é um jovem de dezoito anos reconhecido como Samael Santana, o filho mais velho do arqueólogo que morreu vítima de um estranho acidente, há dois anos, juntamente com a sua esposa, a Historiadora Hellene Santana Faria, e que, misteriosamente até hoje, não tiveram os seus corpos encontrados...