top of page
A Encomenda.jpg

"A Encomenda"

A VOZ DA CIDADE IA MORRENDO AO SEU REDOR, À MEDIDA QUE ACELERAVA O velho sedã, agora legado de seu… Oh, Deus! Desesperada, Paula se agarrou firme ao volante e os borrões dos prédios, das ruas e dos transeuntes belorizontinos tomavam a visão periférica da mulher, afogada em lágrimas. Ao frear diante dum sinal vermelho que praticamente brotou a sua frente, fez os pneus cantarem e uma orquestra frenética de buzinas enfurecidas soarem em uníssono. Pelo retrovisor esquerdo, assim que conseguiu enxergar com mais clareza, avistou o prédio de onde havia fugido. O imponente Hospital do IPSEMG já havia se tornado um mero risco vertical, embora as sombras soturnas projetadas por aquele céu de Setembro insistiam em sustentar nuvens melancólicas que premuniam uma nova tempestade. Ofegante, a senhora na casa dos cinquenta logo voltou a prestar atenção no trânsito quando mais buzinas e xingamentos a advertiram que o semáforo havia se tornado verde…

​

E, esquecida no banco de trás do veículo, a esfera jazia inerte.

 

* * *

​

Erik abriu um olho e encarou a rachadura no teto do quarto. Meio sonolento permitiu-se abrir o outro olho e fechou o primeiro, esfregando-o. Aquela maldita obsessão estava o consumindo novamente. Não poderia mais aguentar toda a pressão que a editora estava jogando sobre seus ombros. Não havia sido assim da primeira vez. Certo que o seu "primogênito" estava praticamente finalizado quando finalmente conseguiu assinar o primeiro contrato, entretanto não se lembrava do seu editor ter pegado tanto assim no pé dele como agora. E para piorar o engravatado tinha toda razão. O deadline estava a ponto de estourar e Erik mal tinha ideia de como terminaria o segundo Romance. Tal era a obsessão que o instigava a passar madrugadas em claro atrás do final perfeito.

​

PÉÉÉÉHN!

​

O barulho do interfone tirou-lhe daquele transe matinal, fazendo-o saltar da cama.Será?! Pensou num misto de ansiedade e pressa enquanto cobria as vergonhas usando duma samba-canção estirada ao chão, bem próxima ao lado esquerdo do móvel mais aconchegante a acolhedor de uma casa. Logo, saltou da cama e correu até o portão. Bocejante,  o escritor já ia abri-lo quando um segundo soar irritante de sua campainha resmungou.

​

PÉÉÉÉÉÉÉÉÉHN!

​

— Já vai! Já vai!…Quem é?

​

— Sedex!

​

Yes! Seu pensamento quase escapou pela boca.

 

* * *

​

O humano mal trancou a porta de sua casa e correu saltitando de volta ao quarto. Puxou logo a cadeira e se sentou diante sua bancada. Afastou depressa as sombras que bebiam do ambiente, ao abrir as persianas e deixar com que tímidos raios de sol ameaçados por nuvens cinza invadissem o recinto. Por um breve instante, avistou os prédios altos que protegiam sua residência e, ao longe, conferiu as horas no relógio digital peculiar localizado no topo de um deles: 09:00h. Entusiasmado, o homem de cinquenta e poucos anos voltou-se a atenção à caixa de papelão e a repousou cuidadosamente sobre o tampo branco, bem ao lado do notebook, pegou um estilete no porta-lápis e começou a cortar a fita adesiva, ignorando todas as outras correspondências que haviam chegado junto ao pacote.

​

Há mais ou menos três meses ansiava por esse momento, desde o segundo em que o amigo que morava fora havia o contatado; revelado a existência da relíquia. Ainda criança, Erik Laerte já tinha um interesse quase amoroso pelo oculto. O mais velho de nove irmãos havia sido o mais afetado pelas ideias do pai, um curioso professor de história que terminou sua vida internado numa ala psiquiátrica após um inesperado derrame que o deixou com sérias e perigosas sequelas psicológicas. Assim, Erik assumiu a cadeira do pai na universidade federal e prosseguiu com as pesquisas do excêntrico doutor especialista em Línguas Mortas.

​

Ao rasgar a caixa sentiu um misto de mofo e de cheiro acre escapar do interior. Por uns segundos chegou a imaginar que os prédios a sua frente estavam dançando, lentamente, ao erguer a cabeça e fitar através da janela automaticamente, evitando o estranho odor. O homem de rosto côvado e desenhado por profundas rugas de expressão balançou a cabeça grisalha e levou o médio e o polegar direito aos olhos, esfregando-os.

​

— Mas o que… — deixou escapar quando voltou sua atenção à encomenda.

​

O professor-escritor piscou como se não estivesse compreendendo.

​

Ao tocar no objeto sentiu um frio estranho beijar-lhe as pontas dos dedos e escorregar por toda a mão como se ela estivesse sendo envolvida por teias de aranha. Em seguida, tal sensação desapareceu dando lugar a uma euforia momentânea demasiada semelhante ao prazer que os humanos dizem sentir após uma suculenta mordida em um bom chocolate. Aquilo não era exatamente o que Patrício havia o mostrado através da webcam há mais ou menos nove semanas atrás. Então o tato gelado foi aos poucos ganhando a temperatura ambiente até que a esfera transparente, fixa na mão esquerda de Erik, começou a emanar uma sutil luz azulada que mais lembrava uma ínfima chama tímida.  

​

Os escuros olhos do homem sofreram um derrame que afogou sua esclera em sangue.

​

Erik gritou, mas já era tarde demais…

​

A parede da televisão se abriu, após um abalo que fez com que todos os livros das inúmeras estantes próximas fossem atraídos pela gravidade. Quando a LED FULL HD se partiu em duas ao beijar o piso de madeira, uma sombra inundou o ambiente escapando da rachadura como se fosse uma espécie de fumaça líquida. A coisa dançou pelas paredes até envolver tudo em trevas. A voz da cidade morreu, assim como qualquer fonte de luz. O quarto vibrou novamente e um perturbador ruído grave de cascos ganhou volume na sequência. Uma espécie de pressão fez o corpo de Erik se contorcer numa posição impossível. A boca do humano foi aberta por uma força invisível. Dor. Sofrimento. Sufocamento…

​

Erik Laerte soltou a esfera e tudo estava normal outra vez. Seus olhos ardiam e, logo, fechou as persianas, voltou-se à bancada e o seu telefone tocou. Meio oscilante ao levantar-se pela segunda vez, foi até uma mesinha de canto ao lado dum sofá, viu o nome da irmã no display do aparelho e levou o fone ao ouvido, ficando mudo por uns segundos:

​

— Erik? — A voz da mulher soou do outro lado.

​

O homem não disse nada.

​

— Erik, seu avoado, espero que não esteja se esquecendo do aniversário do seu sobrinho. Sabe como ele admira o seu trabalho.

​

— Paula? — O homem deixou escapar quase num zumbido.

​

— Erik, que voz rouca é essa? Está parecendo o papai trabalhando até tarde em seus livros. Vê se não vai decepcionar o Bernardo outra vez…

​

Erik desligou o celular antes mesmo de a irmã terminar. Deixou um sorriso estranho desenhar-se em seus lábios grossos e seus olhos escuros voltaram a se tornar vermelhos quando sua atenção retornou à esfera que havia deixado sobre a bancada.

bottom of page