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ENTREALÉM - Capítulo 1

                                                                                               
I

O primeiro estrondo do trovão fez a cama inteira chacoalhar e as paredes tremerem. O que parecia uma dança de muitas sombras, provenientes de algumas árvores no quintal, formava figuras estranhas por todo o quarto, mexendo muito com a imaginação de Tales. O cheiro da chuva entrava por frestas nas diversas janelas, junto com respingos e a voz do vento. Deitado, com os fones no ouvido e o celular na mão, o garoto tentava ignorar a tempestade ao mesmo tempo em que lutava para manter a mente distante do fato de também estar sozinho em casa.

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Agora, o arrependimento por ter negado o convite dos pais corroía as entranhas do menino, assim como o medo que parecia ter se transformado numa mão invisível prestes a esmagar o seu coração. A mãe ainda insistira com o jovem de quinze anos para que ele fosse ao aniversário de casamento dos avós, porém o mais recente viciado em dopamina preferiu ficar em seu “habitat natural” alimentando-se de vídeos sobre danças, e de curtidas, em sua rede social preferida.  

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O segundo bramido dos céus, após um clarão ofuscante, atravessou os fones de ouvido e levou a energia embora consigo. Os olhos de Tales se arregalaram diante do brilho azulado do display portátil. O sinal do wi-fi se foi tão rapidamente quanto a tentativa do garoto em se manter distraído. O grito do vento aumentara; havia feito as persianas zunirem e o coração do menino disparar mais. Assim, o estudante quase foi a óbito quando uma sombra mais rápida que as outras se jogou em sua direção. O berro de pavor foi tão intenso que o pobre cachorro que viera procurar abrigo no colo do dono atirou-se em direção ao corredor tão depressa quanto havia tentado subir na cama. 

 

— Ei, Pata, volta aqui!

 

Mas já era tarde, pois o pet de pelos cor de mel desaparecera escuridão afora.

 

Tales enfiou-se debaixo da coberta, aumentou o som e voltou a encarar o monitor do smartphone. Um vídeo sobre “como são os signos numa festa” surgiu em seu feed. Ele riu quando o influenciador usando uma peruca mostrava como era o comportamento do leonino em uma balada, mas logo o seu sorriso desapareceu quando o vídeo mudou aleatoriamente para uma tela preta com letras amarelas onde a voz de um narrador começou a sussurrar:

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“Existe um mundo em que você só pode acessar entre 3H30 e 3H33…”. 

 

Logo, algumas imagens, ora de lugares, ora de seres bizarros, iam surgindo durante a montagem, na medida em que a voz continuava narrando:

 

“Nesse mundo existe um labirinto, e nesse labirinto existe uma criatura. Ele é uma das únicas maneiras que você tem para voltar ao seu mundo, mas antes de atravessá-lo eu preciso te passar algumas instruções… Número 1: todo o Labirinto é como um ser vivo então não confie em caminhos memorizados, pois eles podem se alternar sempre que ele quiser. Número 2: a Besta do Labirinto é um humanoide de quatro metros de altura que vaga pelos caminhos. Ele é como um guardião e irá atacar tudo aquilo que se mexa para proteger a passagem. Número 3: você precisa ter uma mente bem forte; a Besta consegue farejar o medo. Número 4: se você ouvir algumas vozes que parecem não vir de nenhum lugar, não dê ouvido a elas, pois vão tentar te fazer desistir de tudo. Número 5: ...”

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O vídeo então foi interrompido quando o terceiro ronco da tempestade fez algumas das janelas do quarto estourarem. Tales sentiu um bolo de alguma coisa quente subir pela garganta e, antes de perder os sentidos, reparou que o relógio do display do seu aparelho inseparável marcava exatamente 3H30 da manhã; tudo se calou e mergulhou em trevas.

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II

— Tales! — A voz era, de certa forma, um tanto familiar, mas por mais que ele se esforçasse, Tales não era capaz sequer de abrir os olhos e nem muito menos perceber de onde o chamado vinha — Tales, acorda!
 

Ele tentava despertar, entretanto era como se uma força invisível estivesse sobre o seu corpo, fazendo pressão contra o chão, impedindo-o de se mexer. Horrível e asfixiante era aquilo tudo, uma sensação de impotência. Até que, com muito esforço, ele conseguiu se mexer; tamborilar os dedos contra as pernas e forçar as pupilas. Sentiu um odor pútrido; cheiro forte de ferro (sangue); uma mão acariciou seus cabelos e então ele abriu os olhos, mas não havia ninguém ali a não ser a escuridão.

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Suava frio sobre os lençóis; pijama encharcado. Encarou o teto e a luz tremia, como se a eletricidade estivesse lutando para existir. As pálpebras pesavam, mas colocara toda a força de vontade que havia conseguido reunir para se sustentar acordado. Ainda com mais esforço, pôs-se sentado sobre o colchão. A cabeça rodava e a chuva havia parado. Seus olhos de opalas se moveram em direção à janela. Cacos jaziam sobre o piso amadeirado abaixo, onde uma pequena poça d'água se formara. O pisca-pisca incessável da lâmpada o incomodava. Tateou a coberta em busca do celular. Sentiu o objeto e bateu o indicador duas vezes sobre a tela. O display mostrou uma foto dele mesmo na praia ao lado de seu vira-lata caramelo, além da hora que não passara: 3H30.


— Mas o que…


— Tales! — A voz insistira, quase etérea, vinda de lugar nenhum.

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O músculo vital recomeçou a trovejar na garganta. Voltou sua atenção para o celular, deu um toque no ícone de contatos, buscou “pai” na agenda e discou: fora de área. Tentou uma segunda vez, uma terceira, quarta, quinta, nada! Enquanto tremia, buscou o número da mãe só para ter o mesmo resultado após mais nove tentativas. Abriu o tiktok e procurou o perfil da irmã mais velha, mas o feed não estava querendo carregar. Levou os olhos à barra da internet e entendeu o motivo: ainda sem sinal e, sobretudo, sem 4G agora. Pensou em ligar para a polícia, mas sentiu-se tolo e se imaginou explicando aos policiais o seu medo de escuro. Sem mais opções, achou melhor ir buscar umas velas antes que a luz fosse embora de vez e a bateria do seu Xiaomi também. Contudo, assim que colocou o pé descalço no chão, sentiu alguma coisa roçar no seu calcanhar. Seu grito cortou a atmosfera pesada do quarto e fez com que Pata ganisse; o cão voltou a se esconder sob a cama.

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— Você quer me mata de susto, vira-lata!? — Resmungou, agachando para pegar o cão no colo; os fones caíram de seus ouvidos e, novamente, a voz veio de lugar nenhum:


— Tales!?

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A porta do cômodo abriu com um rangido. O sangue de Tales gelou. O menino só conseguia se manter imóvel, com o olhar fixo no espaço escuro e ainda segurando Pata nos braços. O cachorro caramelo latiu em direção ao nada além da passagem. Alguma coisa mais densa que a escuridão avançou devagar, fazendo a lâmpada acima estourar. O susto fez Tales soltar o animal, que saiu dali em disparada. Tudo, na sequência, aconteceu em menos de dez segundos: por instinto, Tales pulou a cama e correu até a porta gritando a todos pulmões. Sentiu algo o empurrando e caiu de bruços no corredor provando o gosto de sangue nos lábios. Ouviu passos pesados correndo em sua direção e ergueu as mãos para se proteger, ainda aos berros, apontando a tela do celular rumo à porta do quarto. Um grito em forma de guincho ecoou pela casa inteira e a porta se fechou com um baque violento, empurrando o menino para trás e fazendo-o bater com as costas na parede. Quase sem fôlego, ele não pensou duas vezes: levantou e correu pelo corredor, em direção a escada. Não conseguia enxergar muito, mas só desejava sair daquela casa. Corria muito, até que, de repente, reparou que não estava chegando a lugar nenhum… As luzes piscavam e o corredor parecia crescer, se estendendo bem diante seus olhos como se houvesse ganhado vida. Quanto mais Tales corria, mais o lugar ia se esticando. Então o chão tremeu sob seus pés e o piso se abriu. Cambaleante, o adolescente não teve tempo de se segurar em nada e foi engolido pelo buraco.

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III

A queda não foi longa, contudo o baque foi dolorido. Com esforço e quase sem ar, Tales se colocou de lado, em posição fetal, e sentiu o corpo gritar. No entanto, sua dor logo foi ignorada quando percebeu que não estava no andar de baixo de sua casa, mas sim em um corredor sem vida, cinza e com rastros do que lembrava sangue; ora nas paredes, ora pelo chão. Sem acreditar no que seus olhos lhe mostravam, enxugava as lágrimas e, mais uma vez, fazia um tremendo esforço para se mexer. Um som ameaçador parecia ecoar vindo de todas as direções, contudo, ao mesmo tempo, era como se soassem dentro de sua própria cabeça: vozes agonizavam em meio a uma estranha sinfonia de lamentações.

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O medo havia se enraizado em cada célula de Tales. Aquilo não podia ser real. Não é real! Era o que a voz mental do menino almejava com todas as forças, todavia, tais ruídos macabros, o gosto de sangue e as feridas em seu corpo diziam o contrário. Olhou para trás e avistou uma parede destruída bloqueando o caminho, então, tudo o que podia fazer era seguir adiante, prosseguir pelo corredor medonho e mal iluminado por lâmpadas toscas que se espalhavam de quando em quando pelas paredes sujas.

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Tales respirou fundo. Não adiantaria nada ficar caído ali esperando ajuda. Precisava encontrar uma saída, uma forma de voltar para casa, e para isso ele precisaria passar por cima de um de seus maiores medos: o do escuro. Pegou o celular e ligou a lanterna. O feixe de luz proveniente do aparelho escapou como um sopro de esperança. Porém, precisaria se apressar, pois a bateria só se resumia a mais 36% de carga. Colocou-se de pé fazendo uma careta, apoiou-se na parede suja e tentou mais uma vez, em vão, contactar alguém. Agora, nenhuma barra indicando algum tipo de sinal se mostrava na tela. E, antes de dar o primeiro passo em direção ao desconhecido, sentiu a vibração antes do toque polifônico fazendo referência à abertura de seu anime preferido.

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O adolescente deixou o celular cair no chão com o susto, mas logo apressou-se em tomá-lo de volta, ignorando toda a dor ao se abaixar. Fitou a tela e viu as letras formando as palavras “número desconhecido” e, sem pensar duas vezes, atendeu:

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— Alô! — Sussurrou ao levar o telefone ao ouvido. Um silêncio prevaleceu. — Al…


— Corr… corr…


— Oi! Alô! Quem fala?! Socorro! Alô!

— Corrrrrrr… CORRA!

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O estrondo atrás do menino foi o impulso mais que necessário para fazê-lo obedecer àquela voz desconhecida. Tales mal conseguiu entender como havia conseguido se colocar correndo tão depressa. Somente havia deixado o instinto fluir ao finalmente compreender que o corredor estava desmoronando atrás de si. Seus gritos se misturavam ao barulho assustador de tijolos, cimento, ferro, blocos e pedras, escombros que pareciam vivos e que o seguiam com a velocidade e a ameaça de um tsunami. Sentia as pernas arderem e o peito a ponto de explodir, contudo não ousava sequer fraquejar. Algumas lascas de pedras cortavam sua pele, atravessando o pano fino dos pijamas. De repente, avistou uma mancha amarela correndo um pouco à frente e quase se permitiu sorrir ao reconhecer o seu grande e medroso companheiro de quatro patas. O vira-latas parecia o guiar, latindo entremeio aos gritos de seu dono. Rapidamente, Pata fez uma curva quase impossível para esquerda e, por um triz, Tales o seguiu, jogando-se na mesma direção e evitando ser esmagado pelos destroços quase fluídos que seguiram corredor adiante com uma fúria indomada. 

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— Au! — Pata soltou enquanto lambia as feridas do amigo estirado ao chão.

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Aos prantos; soluçante, Tales acariciava seu cão em agradecimento. Sentia o corpo inteiro gritar de dor: as pernas bambas, a boca seca, o coração na goela, a cabeça a ponto de rachar, tudo doía! Contudo ele estava agradecido por ter sobrevivido tanto quanto pela ajuda do amigo caramelo.

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— Obrigado, seu medroso — arfou, afagando o pelo curto do pet.


Pata retribuiu o gesto com mais lambidas.

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— Por acaso não sabe onde fica a saí…

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— A saída é por aqui! — O susto foi tanto que Tales se petrificou ao ouvir aquela voz e, em seguida, encarar o seu dono.

A criança possuía uma pele quase transparente, cujas veias saltavam e pulsavam sutilmente. O rosto era de um branco que lembrava o mármore e/ou, de fato, era esculpido com um material que não poderia ser outro. A máscara possuía o semblante de um querubim, o que casava perfeitamente com a fisionomia da criatura.

— Se é a saída que está procurando, ela está ali, bem atrás daquela porta — a voz abafada pela peça de pedra no lugar do rosto revelou, enquanto o indicador de um único bracinho fantasmático apontava para uma porta toda enferrujada que Tales não havia percebido até então.

Tal porta selava o caminho que o menino só havia alcançado devido ao seu amigo de quatro patas.   

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CONTINUA...

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