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"A Visita"

O NERVOSISMO MASTIGAVA TODOS OS MÚSCULOS DELE, AO MESMO TEMPO EM que cuspia algo muito gelado e incômodo nas entranhas do garoto. A sinfonia composta pelo trânsito, que passava na rodovia principal de Matozinhos, bem atrás do adolescente, compunha a trilha sonora daquele final de tarde. O sol acima daquela cidadezinha do interior de Minas Gerais era um meio termo sutil entre um risco alaranjado no horizonte e um borrão rosado numa tela de nuvens miscelânicas disfarçada de céu, embora ainda deixasse o dia totalmente claro; Aguardando, pacientemente, o abraço da noite.

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Trêmulo, o indicador de Dante se moveu até a campainha e o ruído semelhante a um estridente choque-elétrico ecoou. Suando frio, o jovem esperou, pensando se realmente havia tomado a decisão certa ou se se deixado levar, como sempre, pela impulsividade que na maioria das vezes o devorava. Será que ele e o seu cúmplice não estavam se precipitando? Seria aquela a solução para os seus problemas de relacionamento e, por que não, de aceitação? Revelar tal segredo que os consumia lentamente seria o fim de todos os infortúnios? E assim, além dos músculos, o nervosismo também ia mordiscando o cérebro do garoto na medida em que tais pensamentos se contorciam como larvas numa ferida aberta e totalmente infeccionada.

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No entanto, quando Gabriel atendeu à visita e, timidamente, sorriu com seus amendoados olhos para Dante, todas aquelas preocupações se desmancharam, a voz da cidade se calou e o jovem magro de feição delicada obteve a confirmação de que não conseguiria mais viver sem aqueles olhos que sabiam sorrir como ninguém.

 

* * *

Seu Juvenal estava sentado em sua característica poltrona cinza, acariciando os pelos longos de Fumaça que, acomodado sobre o braço direito do acento de couro, ronronava. O gato soltou um resmungo quando os garotos ganharam a sala.

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— Espero que não tome todo meu tempo, o jogo já vai começar, Gabriel. Não vou perder o Galo golear aquela Raposinha. Boa tarde pro’cê também, Dante!

 

— Tarde, Seu… Juvenal! — A voz do adolescente escapou quase num sussurro. A boca secara.

 

— Quê isso menino, tá pálido! Viu fantasma por acaso?

Gabriel riu meio sem graça, olhando do homem ao parceiro, e tomou a frente em seguida.

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— Pai… Temos um trem sério pra falar — começou, cortando a brincadeira do atleticano baixo e meio calvo bem acomodado em sua cadeira predileta.

 

Por um segundo, o bigode de Seu Juvenal chegou a se erguer apenas de um lado. Gabriel deu um rápido olhar de soslaio com a intenção de espiar o garoto a sua direita, enquanto que Dante, já inquieto o suficiente, sentiu um vento anormalmente frio soprar através da janela do cômodo, que dava direto para a Avenida lá fora.

 

— Quê que ‘cês aprontaram na escola?

 

— Não é nada de escola, pai — Gabriel engoliu seco, finalmente, tomando a mão de Dante.

 

E foi quando tudo acontecera quase que em uníssono.

 

Os olhos côvados de Seu Juvenal se arregalaram e o homem na casa dos cinquenta se levantou depressa da cadeira; Fumaça deu um salto no ar e saiu em disparada pelas escadas que levavam ao andar superior, quando a janela se escancarou e uma lufada gélida demais para a época do ano invadiu a sala sem ser convidada. Ao mesmo tempo, uma escuridão caiu sobre todos como uma manta soturna e tão atrevida quanto aquele vento que só podia ser de origem sobrenatural.

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Aquilo não podia ser um apagão, como Dante chegou a pensar a princípio. Ainda estava claro e o sol terminando de se pôr. Mas mesmo assim a luz da sala piscou; a TV desligou e ligou no outro segundo; o som da rua morreu e voltou… Entretanto somente para serem todos e tudo devorado pela mais absoluta escuridão novamente. Era como se as trevas estivessem bebendo do espaço, se espalhando como uma mancha de tinta numa folha em branco, porém numa velocidade absurda, consumindo tudo, velando todos. Os garotos sentiram os celulares vibrarem e em seguida soltarem faíscas nos bolsos; a luz acima estourou; a televisão morreu, assim como os carros, caminhões, motos e demais veículos que há segundos faziam da Avenida Minas Gerais um inferno. Do andar de cima, ouviu-se um som aterrorizante de uma criança chorando, mas na verdade era o ruído de desespero soltado por Fumaça, seguido de um barulho ainda mais aterrador que, mesmo sem conseguirem se enxergar, fizera com que Dante puxasse Gabriel para um abraço: o devastador som de metal se contorcendo, freadas bruscas e de veículos se chocando descontroladamente uns contra os outros. Gritos, súplicas, desespero, caos…

 

E a escuridão engoliu tudo!

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— Que droga é essa!?

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— Pai!

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— Tô aqui, filho!… Dante? Vocês estão bem?

 

— Sim, nós…

 

As janelas se quebraram. Dante jogou-se no chão, puxando Gabriel. O filho gritou pelo pai outra vez e o Seu Juvenal começou a tatear o nada a procura dos meninos. Não se via nada naquela escuridão! Os gritos foram se aproximando. Pessoas estavam invadindo a casa dos Ferreira. Gabriel sentiu a mão fria do pai em seu ombro e a segurou firme. Dante não soltava a braço de Gabriel nem por reza. Seu Juvenal abraçou os dois e começou a tatear o cômodo em direção à saída. As pessoas estavam infestando a casa. Gritos. Alguém trombou nos três e tombou silencioso ao chão. Um cheiro podre e ao mesmo tempo ácido invadiu a casa de Seu Juvenal, misturando-se ao odor de gasolina, medo, fumaça, suor, desespero, ferro… Sangue! Impotente devido à escuridão, o pai de Gabriel começou a puxar o filho e o amigo o máximo que podia contra o fluxo de pessoas que continuavam entrando em sua casa, como que fugindo desesperados de algo. Do engavetamento era certo!

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Finalmente conseguiram respirar melhor. Ar fresco. Embora agora, uma vez na varanda, o odor pútrido e o característico cheiro de sangue haviam aumentado drasticamente.

 

— MINHA PERNAAAA!!!

 

— Oh, meu Deus!

 

— Minha Nossa Senhora!

 

— SocorrroOOO!!!

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O caos usurpara o trono!

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Berros ensandecidos, mulheres desesperadas, cheiro de queimado, homens suplicando por ajuda, crianças implorando socorro, o som do fogo, o odor fétido, pequenas explosões… e ainda assim, Dante, Gabriel e o senhor Ferreira não conseguiam ver nada. Eles apenas vivenciavam toda a escuridão, sentiam todos os odores e sons que evocavam agonia, desespero, destruição; Morte! Até que Dante, no meio de todo aquele inferno de trevas, arfou o ar ao seu redor tomando coragem para deixar escapar as palavras que gaguejaria - não de vergonha, mas de medo - a seguir:

 

— S-Seu Juvenal… Eu… a-amo — o adolescente apertou firme a mão de Gabriel como se pedisse por ajuda.

 

O que quer que fosse tal escuridão repentina, por mais que demasiadamente assustadora, não seria ela que iria os impedir de ficarem juntos como haviam prometido um ao outro.

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— Pai, se a gente morrer agora, queria dizer que…

 

— Eu sei meu filho. Sempre soube. E ninguém vai… morrer! — Seu Juvenal revidou com a voz aflita, quase falhando.

 

— Pai!

 

— Mas que droga! O que está acontecendo nessa cidade? — Foi a vez de a voz desesperada de Dante escapar de sua garganta como um animal em fuga.

 

Silêncio!

 

Um silêncio tão sobrenatural quanto aquela escuridão penetrou em todas as coisas. Primeiro ele bebeu da voz de Dante e depois de cada grito, de cada lamento. Abafou cada som perturbador que há segundos conduzia todo aquele repentino mar de caos. Foi como se aquela estranha e densa escuridão houvesse criado uma bolha acústica que absorveu todo o barulho do mundo. Nem mesmo os arfantes chiados das respirações podiam ser ouvidos. Depois o silêncio apagou também o barulho da rua, do fogo, das rodas girando, das pequenas explosões ao longe. E então Dante começou a ver um contorno sutil. Uma espécie de silhueta se desenhando na escuridão. Entretanto era algo tão negro quanto o negrume que velou a cidade de Matozinhos. Algo que desgarrava do escuro: um pedaço de treva que ganhava forma e espiralava e se moldava para dar vida a um humanoide lúgubre e ímpar.

 

E o coração de Dante é que foi mastigado pelo nervosismo dessa vez. Uma onda de choque se espalhou pelo corpo do garoto de apenas dezesseis anos, fazendo com que ele estagnasse; Não movesse um milímetro. Não queria morrer. Ainda tinha muito que fazer. Ainda mais agora que resolveram revelar aquele segredo que os sufocavam - a ele e a Gabriel - ao pai do alguém que mais amava na vida; daquele que havia despertado sentimentos e desejos jamais experimentados ou mesmo imaginados. Queria tanto poder sair dali. Arrastar Gabriel. Contudo, seu corpo não era capaz de obedecer às súplicas de sua mente. Aquela coisa, o que quer que fosse que estava ganhando vida na escuridão, não iria permitir que saíssem dali vivos. Algo bem lá no fundo da alma de Dante gritava a ele que o fim estava muito próximo. O frio sobrenatural, tão quanto o pavor que sentia agora, fez a espinha dele congelar.

 

                                                                   * * *

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A cria do escuro abriu os olhos. Estava feito. Haviam finalmente conseguido. Encontraram enfim o receptáculo tão procurado. Tudo estava acontecendo como o planejado. O ser sorriu. E seu vil sorriso se alargou ainda mais quando percebeu o olhar desesperado do humano a sua frente. Aquele cheiro doce e tão apreciado penetrou pelos orifícios que cumpriam a função de um nariz. Seus dedos longos de garras afiadas retesaram. Esfregou o casco fendido no asfalto para ter certeza de que estava no Plano Material e não mais deslizando em camadas e mais camadas de gelo fétido. Suas panturrilhas peludas dobraram, ele arfou o desespero do humano uma última vez e então saltou em direção à primeira vítima. 

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